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sábado, 17 de janeiro de 2015

Sobre "Édipo Rei", de Sófocles


Introdução
 
Em um mar de livros e coleções clássicas que compõem a literatura mundial considerada essencial e indispensável a todo e qualquer indivíduo interessado, se encontra um pequeno livro chamado Édipo Rei. Pequeno apenas em tamanho e número de páginas, pois a grandeza da história é inegável em qualidade e influência. Escrito por volta de 430 a.C. por Sófocles, o livro é lembrado como um perfeito exemplo de uma tragédia grega, principalmente depois de ter suas qualidades reconhecidas por Aristóteles em sua obra Arte Poética.

O autor, acredita-se, chegou a escrever mais de 120 peças teatrais, porém, tiveram o privilégio de chegar aos dias de hoje apenas sete (perdas atribuídas ao próprio tempo, descuidos e, também, à Igreja inquisidora). Das sete remanescentes, três compõem a chamada Trilogia Tebana: são eles, em ordem cronológica de acontecimento, Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Aqui, em especial, trataremos apenas do primeiro volume.

O seu conteúdo, que envolve, entre parricídio e regicídio, o incesto entre mãe e filho, foi usado como referência por Sigmund Freud para designar uma síndrome desenvolvida nos primórdios do desenvolvimento psicossexual, no qual a criança se apaixona, quando mulher, pelo pai, e quando homem, pela mãe. Tal síndrome, que tem sua gênese entre os três e seis anos, foi chamada de Complexo de Édipo. 

Segundo Aristóteles em Arte Poética, os elementos da ação complexa, enumerados já no décimo primeiro capítulo, são peripécia, reconhecimento e acontecimento patético (ou "catástrofe"). Em Édipo Rei, todos estes elementos são facilmente identificáveis (veremos mais abaixo) e, além disso, muito bem escritos e desenvolvidos - o que justifica os elogios dispendiosos de Aristóteles à obra.

Enredo

Édipo Rei tem como ponto de partida uma peste que atinge a cidade-estado de Tebas. Clamando por ajuda, um grupo de cidadãos vai ao encontro rei Édipo, para que este busque alguma forma de cessar ou ao menos amenizar os efeitos do flagelo que os atinge. O rei, mostrando-se bastante solícito e prestativo, manda seu cunhado, Creonte, em busca de uma resolução para o problema através de uma consulta ao Oráculo de Delfos, o mais importante centro religioso da Grécia Antiga (hoje em ruínas). A resposta ofertada por Apolo, através de Creonte, é a de que Tebas apenas se verá livre da peste quando o assassino de Laio, o rei antes de Édipo, fosse devidamente punido.

Este foi o estopim para que o leitor começasse a instigar suas curiosidades a respeito de como ocorreu a sucessão do trono, uma vez que não valeram as práticas de praxe, já que supostamente Laio não deixou herdeiros. Não são fornecidas muitas informações a respeito do passado de Tebas, mas pelo carinho que a população tebana tem para com Édipo, depreende-se que este ajudou a cidade a se reerguer de uma crise e espantar de lá os males que a assolavam, os quais tem ampla ligação com a Esfinge. Isto, porém, não é tratado neste volume. A questão é que, após prestar tal amparo a Tebas e sentar em seu trono, Édipo toma para si a esposa do antigo rei e com ele tem alguns filhos. Segue-se, então, cerca de quinze anos até os tempos em que a peste faz-se presente.

A questão do passado de Édipo faz-se presente por partes, as quais tomamos conhecimento tanto através do próprio Édipo como de antigas testemunhas. Em síntese, Édipo é filho de Pólibo, rei de Corinto. Uma singular ocorrência, porém, instigada por um comum durante um evento, no qual a legitimidade do herdeiro de Corinto, Édipo, é questionada, a curiosidade deste é instigada. Buscando por respostas, parte ao Oráculo de Delfos, onde uma profecia lhe é revelada: sua sina é cometer parricídio, isto é, assassinar o próprio pai e, ainda, desposar a própria mãe. Estando crente de que esta era a condição à qual estaria subordinado, o inquieto Édipo tenta lutar contra o próprio destino e retardar o que supostamente lhe aconteceria. A solução encontrada foi a fuga de Corinto, onde estavam seus pais e supostas e potenciais vítimas do seu destino, para a poderosa Tebas.

Crendo-se já isento de responsabilidade da profecia por conta do tempo e distância, Édipo concentra seus esforços em resolver a suficientemente embaraçosa situação em que se encontra sua Tebas. Porém, uma verdadeira tormenta é provocada na mente de Édipo quando este chama um profeta cego, Tirésias, para ajudar a elucidar a questão referente à morte de Laio. Entretanto, de forma bastante estranha e temperamental, o profeta se recusa a responder quem é o assassino, pois este estaria mais próximo do que Édipo seria capaz de imaginar. Não sem demandar muita resistência, ele acaba por acusar o próprio rei Édipo de ser o regicida, isto é, o assassino do rei.

A primeira reação é bastante esperada e digna de um rei: Édipo crê que a acusação nada mais é do que uma parte de um plano que espera tirá-lo do trono. Acusa, por isso, Tirésias, o profeta, de ser mancomunado com Creonte, seu cunhado, o qual, buscando enfraquecer a imagem e índole do atual rei, seria o pretendente a sucedê-lo. Tais calúnias não foram bem recebidas, sob juras de lealdade incondicional de Creonte. A inquietação de tal acusação, feita por um profeta cujos reconhecimento e legitimidade, cultivados por anos de experiência, não poderiam ser questionados, ainda permanecia em Édipo.

Assim como a situação exigia, Édipo se força a recordar de coisas que poderiam ser importantes para ajuda-lo a elucidar a questão. Duas recordações vêm. A primeira, da profecia. Estaria ele destinado a matar o próprio pai? E como isso se aplicava ao atual caso? Para tanto, precisaria ser filho de Laio, o que lhe era impossível de conceber. A segunda memória foi a de um dia, durante o trajeto de Corinto a Tebas, quando, em uma encruzilhada, encontra um velho homem o qual, diante de seu comportamento desagradável, Édipo mata.

Diante de tais embaraços, Édipo recebe um mensageiro direto de Corinto que oferece a Édipo o trono da cidade-estado, já que o seu rei, Pólibo, está morto. Por um instante, Édipo enche-se de alegria, não exatamente pela morte do pai, mas pelo que aquilo significava: a não concretização da profecia. Édipo não seria, afinal, um parricida. Uma nova revelação, porém, vêm a ser feita: o povo de Corinto oferecia a Édipo o trono de sua cidade, apesar (veja bem!) de saber que em verdade não era filho legítimo de Pólibo. Nas palavras do mensageiro, "É que ele não era teu pai, como eu não sou!".

Nesse ponto, após requisitada, há a aparição de um servo, o qual seria a única pessoa viva que acompanhava o rei Laio na viagem em que este fora massacrado, com o objetivo de responder a algumas perguntas. Com este personagem, forma-se um grupo suficiente para que respostas de conteúdo antigo fossem dadas a perguntas imediatas. Revela-se que o tal servo recebeu um bebê direto das mãos da rainha Jocasta, o qual seria fruto da união dela com rei Laio, que deveria ser morto. Os motivos seriam "terríveis oráculos", os quais haviam apontado que Laio seria assassinado pelo próprio filho. Com a criança em mãos, o servo, porém, se impieda e a entrega para o mensageiro, para que este a criasse como se fosse seu próprio filho. Ele, porém, o entrega ao rei de Corinto, e se desenrola toda a história.

Tomando conhecimento da realidade, Jocasta corre para dentro do palácio e lá se enforca. Édipo toma ciência de que os oráculos que temia um dia se realizarem e agiu por toda a vida a fim de evita-los, não apenas estavam corretos como já se haviam realizado e se apresentavam a ele como a realidade que sustentava: sua posição de rei dependeu da ausência do anterior, de cuja morte ele próprio havia se encarregado; sua esposa e mãe de suas filhas revelou-se ser sua própria mãe. Não suportando tal vergonha, a de ter que encarar a realidade tal como é, Édipo, já se deparando com Jocasta suicidada, tira do vestido dela alguns colchetes de ouro (objetos equivalentes a alfinetes) e os enfia nos próprios olhos, cegando-se definitivamente. Por fim, vemos Creonte, seu cunhado, discutindo seu futuro e, atendendo ao pedido do próprio Édipo, cedendo-lhe o a possibilidade de se exilar.

Elementos da ação complexa

Aristóteles nasceu em 384 a.C., ou seja, 43 anos depois de Édipo Rei ser escrito (o que aconteceu por volta de 427 a.C.). O bom desempenho de Sófocles certamente era reconhecido, uma vez que, ainda como estreante, ganhou um concurso literário, ficando a frente de um dos maiores nomes da época, Ésquilo; além disso, Sófocles foi, por quase meio século, um dos mais notórios dramaturgos de Atenas. Sua obra, porém, à época de Aristóteles, não poderia ser considerada como clássica e muito menos absoluta - o que não impediu que o renomado aluno de Platão reconhecesse os méritos de Édipo Rei, chegando a caracteriza-la como a mais perfeita tragédia já escrita. 

Tal elogio, porém, não parte de um prejulgamento absolutamente pessoal e parcial que contava apenas com a questão de identificação dele, enquanto indivíduo, com a obra e seu conteúdo. Inclusive esta é a forma como a grande maioria das pessoas alcunha uma obra como "boa" e "ruim" - o que é um erro. Não é possível que se faça um julgamento de uma obra tendo como ponto de partida critérios subjetivos. Em análise, a objetividade há de prevalecer e, contidos em Arte Poética, estão inúmeros critérios objetivos através dos quais, fazendo notar sua presença, pode-se determinar se a obra detém a qualidade mínima para o gênero - no caso, a tragédia.

Aristóteles denomina tais elementos imprescindíveis como "elementos da ação complexa", os quais decorrem, fundamentalmente, na seguinte ordem: peripécia, reconhecimento e acontecimento patético ou "catástrofe". Em Édipo Rei encontramos todos esses elementos.

A peripécia nada mais é do que um acontecimento cuja ideia inicial passada (às vezes propositadamente) é errônea, isto porque sua intenção ou a interpretação que damos a ela não gera aquilo que é esperado. Decorre exatamente o contrário ao que era inicialmente indicado. Em Édipo Rei, isso fica bastante evidente quando Édipo, no auge de seu conflito interno, que envolvia seu presente e passado, recebe um mensageiro vindo de Corinto que alega ter boas notícias que serviriam para tirar o peso de sua consciência (a morte se seu suposto pai), mas que servem apenas para atiçar mais e mais a revelação da trágica verdade.

O reconhecimento é aquele que, na definição do próprio Aristóteles, "faz passar da ignorância ao conhecimento, mudando o ódio em amizade ou inversamente nas pessoas voltadas à infelicidade ou ao infortúnio". Também encontramos isso em Édipo Rei, em especial no momento em que são feitos todos os devidos esclarecimentos, tanto por parte do mensageiro como do servo. Diz Édipo no momento em que reconhece o real estado de sua condição: "Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que te vejo pela derradeira vez! Todos sabem que tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me casei e matar aquele a quem eu não podederia matar!". Vimos acima do que se trata a peripécia, e observamos que ela, protagonizada pelo mensageiro, contribuiu para que o reconhecimento se desse. Diz Aristóteles sobre essa relação: "O mais belo dos reconhecimentos é o que sobrevém no decurso de uma peripécia, como acontece no Édipo".

Por fim, temos o acontecimento patético ou catástrofe que consiste em nada mais que, nas palavras de Aristóteles, "uma ação que provoca morte ou sofrimento, como a das mortes em cena, das dores agudas, dos ferimentos e outros casos análogos". A tragédia é, ao contrário do que alguns podem pensar, o todo, isto é, a história em sua integridade - as mortes, a autoflagelação e o sofrimento (os protagonistas desse terceiro item) nada mais são que uma espécie de clímax, isto é, a cereja do bolo. Nesse ponto há uma questão a se levantar. Como o próprio gênero da obra é a tragédia, o elemento trágico é bastante evidente na obra de Sófocles, principalmente nos momentos em que Jocasta se suicida e Édipo se cega com os alfinetes. Porém, ao contrário do que faz com a peripécia e o reconhecimento, Aristóteles apenas cita esse elemento e não especifica a importância desse artifício para a narrativa.

Ouso aqui, enquanto um leitor leigo, tentar explicar a tragédia, o gênero, e a importância de suas inevitáveis "tragédias", isto é, os acontecimentos catastróficos aos quais Aristóteles faz referência. Para que se faça ilustrar o que aqui digo, tomo os exemplos de Édipo Rei, de Sófocles, e de Hamlet, de Shakespeare (cuja historia, já representada e adaptada para os mais diversos meios, se faz mais presente quase que em toda cultura popular), ambos, apesar de publicadas com um hiato de quase 2 mil anos, são considerados tragédias. Aos desavisados: em Hamlet, acompanhamos a história de um jovem príncipe (que dá nome à peça) que busca vingar a morte do seu pai, o antigo rei.

Acontece que ambas as histórias têm pontos críticos, os quais precedem o acontecimento patético ou catástrofe. No caso de Hamlet, decidido a assassinar o próprio tio, regicida e atual rei, o jovem príncipe, na cena final, em um combate de armas, acaba por conseguir vingar o pai, porém todos que estão presentes no salão acabam mortos, inclusive nosso herói. Em Édipo Rei, Jocasta e Édipo acabam em desgraça ao serem confrontados por sua real condição. Mas afinal, como esses finais são justificados?

Saber lidar com problemas é uma habilidade com a qual poucos são agraciados. Até em pequenas situações cotidianas passa à mente a fácil e tentadora possibilidade de abdicar da vida. Nos grandes e irreversíveis problemas, porém, a situação é mais extrema, e a morte não é apenas o caminho mais viável, como também tentadora, seja pelo medo, pelos receios ou pela vergonha. O personagem, em um momento de quase esclarecimento, admite a si mesmo que não é capaz de lidar com a situação e a única alternativa é, em vida, ser exposto a um julgamento possivelmente injusto da sociedade, ou morrer. 

Hamlet mata o rei, e parece bastante plausível que ele morra, uma vez que ele vinga o pai através dos relatos do fantasma deste, testemunha muito pouco palpável que faria do jovem Hamlet, também, um regicida. Em Édipo Rei, Jocasta em especial, se suicida por não ter culhões de olhar aos próprios filhos e ver neles, também, seus netos; de acordar todos os dias e ver no seu esposo o seu filho; de ter olhos sobre si que fazem julgamentos pessoais e pouco flexíveis. O acontecimento patético ou catástrofe representam, no fim das tragédias, uma última possibilidade para vidas que estariam destinadas a serem desgraçadas e desprovidas de qualquer motivação.

O destino

Certamente não há o que mais amedronte o homem senão aquilo que ele desconhece. O futuro, porém, e em especial o seu próprio futuro, muitas vezes é alvo de tamanha curiosidade (seja pela vontade de saber se os cultivos da vida presente renderão frutos, ou até mesmo para saber se a vida presente e seus desafios valem ser vividos, caso o que o futuro lhe reserve seja ou não o que se espera) que leva os indivíduos a se valerem dos mais diversos meios para conhecê-lo. Nos dias de hoje, por mais informações que as pessoas tenham a seu dispor, muitas ainda buscam cartomantes e videntes, apesar de que, na maioria dos casos (para não dizer em todos), são vigaristas e charlatões, na esperança de que lhes deem alguma esperança para problemas financeiros, amorosos ou propriamente psíquicos.

Perceba que a esperança nada mais é do que uma previsão (que somente o tempo julgará ser genuína ou não) à qual a pessoa busca se agarrar e buscar levar a vida mais tranquilamente. Certamente foram estas mesmas intenções que levaram dois personagens importantes para a trama de Édipo Rei, Laio e o próprio Édipo, a buscarem a consulta de oráculos. No caso da trama, que se vale do fator fantástico muitas vezes inerente à narração fictícia, os oráculos eram verdadeiros e suas profecias genuínas, portanto nos levam a uma reflexão bastante interessante. É prudente que o homem saiba o seu futuro? Sabê-lo muda, de alguma forma, a sua história ou até mesmo o próprio futuro? Ou ainda, o futuro é um fator aberto a mudanças?

Trazendo a discussão para uma obra contemporânea, no livro A Dança dos Dragões, quinto livro de As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, lady Melisandre, devota ao Deus Vermelho que recebeu de R'hllor a graça da visão nas chamas, ao fazer uma profecia diz o seguinte: "E pode ser que, se agir, você possa evitar completamente o que vi. - De outro modo, para que serviriam as visões?". Pois é. Se o oráculo de fato era capaz de prever o futuro, um objetivo plausível seria justamente informar os protagonistas daqueles fatos vindouros para que eles, quando se tratasse de alguma mazela, buscassem evita-la.

A questão é que, se de fato era esse o objetivo, tanto Laio como Édipo falharam miseravelmente. Laio não conseguiu que o filho fosse morto, pela piedade de um servo. Édipo não conseguiu não matar o pai, uma vez que se afastou e evitou por anos a pessoa errada. Ainda mais, há de se questionar: haveria a possibilidade de ter sido diferente caso nenhum dos dois (ou uma das partes) não tivesse tomado conhecimento dos oráculos? Teria o destino deles, ao ser ditado pelo oráculo, se tornado inevitável? Ou o destino de ambos já estava devidamente traçado desde os primórdios?

Todas estas são questões que não ouso sequer tentar responder.

Material consultado:

"Édipo Rei", de Sófocles
"Arte Poética", de Aristóteles
"Outline of Aristotle's Theory of Tragedy in the Poetics", de Barbara F. McManus (acesso em 09/01/15)
"Hamlet", de William Shakespeare
"A Dança dos Dragões", de George R.R. Martin (capítulo 32 - Melisandre)

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